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domingo, 5 de fevereiro de 2023

Extermínio do povo Yanomami e repercussões no direito penal internacional

 A tragédia humanitária que acomete o povo Yanomami não resulta de fato esporádico e repentino, mas de paulatina sistematização de ações/omissões destrutivas e violadoras dos direitos humanos fundamentais

 (Foto: Nelson Ameida/AFPyb)
O filósofo francês Edgar Morin escreveu em um de seus clássicos, Cultura e barbárie europeias (Bertrand Brasil, 2009, p.38) que foi com a expansão mundial da civilização ocidental que se deu a destruição dos povos sem Estado.

A visão de Morin bem poderia levar a um questionamento aparentemente paradoxal: como o avanço da “civilização” poderia conduzir a história humana à “destruição” de algum povo? Para Morin, a “barbárie” é elemento da “civilização” e que produz “conquista” e “dominação”.

É interessante uma rápida revisitação ao passado, mais especificamente ao início do século XX, período no qual um jovem nascido em 24 de junho de 1900, na Bielorrússia, chamado Raphael Lemkin, emocionara-se ao ler o clássico Quo Vadis?, ainda no ano de 1913, de autoria do prêmio Nobel de Literatura de 1905, o polaco Henryk Sienkiewicz, e que relata os massacres dos cristãos convertidos no Século I pelo imperador romano Nero.


 

Chocado com a reação festiva dos cidadãos de Roma ao testemunharem a carnificina dos cristãos, após questionar como seria possível tal crueldade, ouviu de Bella, sua mãe, intelectual de primorosa formação como pintora, linguista e estudante de filosofia, que “quando o Estado resolvia exterminar um grupo étnico ou religioso, a polícia e os cidadãos tornavam-se cúmplices, e não guardiões da vida humana”, lição de impressionante atualidade (POWER, Samantha. Genocídio: a retórica americana em questão. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, p.44).

Da marcante experiência intelectual e reflexiva de Lemkin brotaria um compromisso que tomaria toda sua vida, quando já graduado em Direito e Linguística: a luta pela criminalização dos atos de extermínios de grupos humanos, então denominados por ele como “genocídio”, termo por ele próprio cunhado a partir da junção dos termos grego Genos (clã, grupo etc.) e do latim Cides (matar, destruir) em sua clássica obra Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation, Analysis of Government, Proposals for Redress (Lawbook Exchange, Ltd.; 2nd ed. Edição, 2008, 736 páginas).

A criminalização da destruição intencional de grupos humanos, total ou parcialmente, por motivações de nacionalidade, religião, etnia ou raça, conforme tipificado pela Convenção para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio das Nações Unidas, de 1948, é resultado da luta solitária de Raphael Lemkin, ele próprio uma vítima direta do nazismo, uma vez que sua família, de religião judaica, foi exterminada em boa parte pela política genocida de Hitler. Lemkin se refugiaria nos Estados Unidos, onde viveu e morreu em 1959, na cidade de Nova York. Em seu epitáfio consta: “pai da convenção do genocídio”.

A terrível situação humanitária sob a qual se encontra o povo Yanomami no Brasil, conforme noticiado amplamente em janeiro de 2023, e que vem chocando grande parte do país e do mundo, parece encontrar eco no passado: uma nação indígena (Yanomami), portanto, que já vivia em território brasileiro antes do surgimento do próprio Brasil, é deixada sob abandono pelo Estado, regido por uma Constituição que impõe sua proteção, enquanto órgãos do governo e milhares de garimpeiros ilegais decretam a morte de todo um povo por meio do envenenamento das águas e do solo; pela propagação da malária; pelas invasões e assassinatos.

Os fatos falam por si e sugerem certa sistematização na proposição e adoção de medidas e “omissões” capazes de levar o povo indígena ao seu extermínio, tal como vem sendo denunciado há anos pelos próprios Yanomamis, pelos indigenistas, defensores dos direitos humanos e especialistas.

Considere-se a seguinte linha do tempo, aqui apenas exemplificativa:

– 4 de outubro de 2019: o servidor de carreira da Funai, Bruno Pereira, é exonerado após combater garimpos ilegais e mineradoras que pretendiam atuar na Terra Indígena Yanomani, em Roraima. No mesmo período, Jair Bolsonaro apresentava ao Congresso projeto de lei para liberação da mineração, atividades exploratórias e legalização dos garimpos existentes nessas regiões;

– Março de 2020: a Organização Mundial da Saúde decreta a pandemia em virtude da propagação da Covid-19;

– Junho de 2020: o Exército brasileiro inicia a distribuição de cloroquina, sem comprovação científica de eficácia no combate ao vírus e com gastos então objeto de investigação pelo Tribunal de Contas da União (TCU);

– 3 de julho de 2020: O desembargador Jirair Aram Meguerian (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) concede à União o prazo de cinco dias para que fosse apresentado plano de retirada dos garimpeiros ilegais das terras Yanomamis, bem como para enfrentamento dos crimes ambientais então constatados;

– 6 de julho de 2020: a então ministra Damares Alves solicita ao presidente Jair Bolsonaro que vetasse artigos da Lei 14.021/20, que reconhecem a extrema vulnerabilidade desses povos e estabelecem medidas especiais de apoio à sua saúde, como a reserva de leitos de UTI, acesso a medicamentos e  à água potável em plena pandemia. Os artigos de lei foram vetados pelo então presidente, mas os vetos foram derrubados pelo Judiciário;

– 8 de julho de 2020: o ministro Luís Roberto Barroso (STF), na ADPF 709/2020, determinou que o governo Bolsonaro adotasse medidas de combate à Covid-19 entre os povos indígenas, inclusive a instalação de barreiras sanitárias para proteção das populações indígenas; as medidas cautelares ordenadas pelo Ministro foram seguidamente descumpridas pelos órgão encarregados de executá-las.

– 17 de julho de 2020: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), atende pedido de concessão de medida cautelar apresentado pela Associação Hutukara Yanomami e pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em favor dos Povos Yanomami e Ye’kwana diante de riscos graves e iminentes de danos irreparáveis que corriam aqueles povos, em face da invasão de garimpeiros e propagação de doenças. Assim, pela Res. 35/2020, a CIDH solicitou ao Brasil que adotasse as medidas necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade pessoal dos membros dos Povos Indígenas Yanomami e Ye’kwana;

– Dezembro de 2020: publica-se a Carta de Anomalias, produzida pelo Serviço Geológico do Brasil, ligado ao Ministério das Minas e Energia, estimulando a prospecção mineral e fomentando investimentos privados, mostrando locais prováveis de ricos depósitos minerais, inclusive em terras indígenas. A partir dessa publicação, e imediatamente após, 63 novos pedidos de mineração foram apresentados e deferidos.

– 16 de março de 2021: Após novo pedido pelo Ministério Público Federal (MPF), a 2ª Vara da Justiça Federal de Roraima determinou que a União, no prazo de dez dias, apresentasse cronograma para retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 1 milhão;

– Maio de 2021: A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pediu ao STF a imediata retirada dos garimpeiros das Terras Indígenas, incluídas as Terras Indígenas Yanomamis. Em 24 de maio de 2021, o ministro Luís Roberto Barroso ordenou que o governo federal retirasse os invasores das Terras Indígenas Yanomami (Roraima) e Munduruku (Pará).

– Setembro de 2021: A Alta Comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Michele Bachelet, expressou preocupação em face das denúncias de ataques de garimpeiros a indígenas em seus territórios, e as tentativas governamentais de legalizar empreendimentos em terras indígenas, bem como proposições governamentais tendentes a limitar o conceito de “terras demarcadas”. Também pediu às autoridades brasileiras que não retirassem o Brasil da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata da proteção de populações indígenas, conforme Projeto de Decreto Legislativo 177/2021 (em tramitação no Congresso).


– Novembro de 2021: a Funai, presidida à época por Marcelo Augusto Xavier da Silva, proíbe equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de levar assistência médica ao povo Yanomami, já sob surto de malária, desnutrição e completo abandono pelo governo Bolsonaro;


– 14 de novembro de 2021: imprensa noticia que crianças Yanomamis já padeciam de desnutrição, falta de atendimento médico; ainda, a redução da caça e pesca essencial ao sustento do Povo Yanomami em razão dos garimpos criminosos;


– Maio de 2022: o Exército negou apoio logístico para que comitiva formada por parlamentares (deputados federais e senadores) que se encontrava, à época, em Roraima, pudesse visitar as Terras Indígenas Yanomamis, inclusive após o envio de ofício pelo senador Humberto Costa (PT-PE) ao general Marco Antônio Freire Gomes, em 5 de maio de 2022;


– 5 de maio de 2022: A Apib recorre uma vez mais ao STF para proteger povo Yanomami e denunciar incentivo do governo federal ao garimpo ilegal;


– 1º de julho de 2022: A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) publica resolução com medidas provisórias a serem cumpridas pelo Brasil após concessão de cautelar pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no pedido apresentado pela Associação Hutukara Yanomami e pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) para proteção dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana;


– Novembro de 2022: a Polícia Federal lança a operação Yoasi para combate à fraude na compra de remédios destinados ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y), em Boa Vista. Segundo dados iniciais, cerca de 10 mil crianças Yanomamis ficaram sem medicamentos.


De se lembrar que ao menos duas ações civis públicas foram propostas pelo Ministério Público Federal de Roraima contra a Agência Nacional de Mineração (ANM), a Funai e a União, ambas com decisões favoráveis à tomada de medidas de proteção aos povos Yanomami, com decisões favoráveis de primeira e segunda instância, jamais cumpridas pelas autoridades encarregadas de dar cumprimento às ordens judiciais. (ACP 1001973-17.2020.4.01.4200, ao qual foi apensado o PA 1.32.000.000426/2022-18)


Tendo em consideração os eventos mencionados na linha do tempo, é forçoso reconhecer que a tragédia humanitária que acomete o povo Yanomami não resulta de fato esporádico e repentino, mas de paulatina sistematização de ações/omissões destrutivas e violadoras dos direitos humanos fundamentais de que é titular aquela nação indígena.


O Estado brasileiro não possui, em sua legislação, a tipificação do crime contra a humanidade.


Entretanto, ratificou o Estatuto de Roma, promulgado posteriormente pelo Decreto n° 4.388, de 25 de setembro de 2002. Significa afirmar que referida norma internacional constitui fonte de direitos e obrigações na ordem jurídica interna, uma vez que a própria Constituição da República estabelece sua “cláusula de abertura” em seu §2°, artigo 5º, que expressamente reconhece como fonte de direitos fundamentais também os tratados internacionais aos quais o Brasil tenha aderido. Ademais, pela EC 45 foi introduzido, no art. 5ºda CF, o parágrafo 4º, que estabelece que o país se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional.


Em seu artigo 7º, o Estatuto de Roma define o crime contra a humanidade como o “ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”.


Ao detalhar as condutas que podem “operacionalizar” o crime contra a humanidade, três delas parecem se aproximar do contexto da tragédia humanitária do povo Yanomami:


a) Extermínio (artigo 7º,1, “b”);

b) Perseguição (artigo 7º,1, “h”);

c) Prática de outros atos desumanos (artigo 7º,1, “k”).

Assim, entenda-se o extermínio como modalidade de “crime contra a humanidade”, “a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população” (artigo 7º,2,”b”).


Por perseguição, define o Estatuto de Roma como sendo a privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da coletividade em causa (artigo 7º,2,”g”).


Ora, é evidente que a privação de medicamentos para combate às verminoses e que vêm causando a morte de crianças Yanomamis subnutridas e sufocadas ao expelirem vermes por vias aéreas, conforme denúncias de mais de ano, implica em condutas intencionais do governo Bolsonaro em razão da prevalência de interesses predatórios na cessão as Terras Indígenas (TIs) pertencentes àquele povo para a mineração e toda sua cadeia destrutiva.


Portanto, ações criminosas relacionadas à etnia daquele povo vitimado.


A violação ao direito internacional é também flagrante, uma vez que o Brasil aderiu à Convenção n° 169 da OIT e que determina em seu artigo 6º a garantia aos povos originários do direito à prévia e livre consulta sobre qualquer medida legislativa ou governamental que afete seu modo de vida.


Ainda, a conduta consistente na prática de outros atos desumanos, deve ser de tal gravidade que cause intencionalmente e grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental do grupo vitimado.


Ora, o veto ao envio de água potável e medicamentos; o desmonte das estruturas normativas e administrativas fiscalizatórias; a demissão de servidores comprometidos com a defesa do meio-ambiente e dos povos indígenas, como Bruno Pereira, além da completa omissão no combate ao assassinato constante de lideranças indígenas e indigenistas; ainda, a negligência com a cooptação de indígenas pelo garimpo criminoso e também visando o arrendamento de TIs, expressamente vedado pelo artigo 231 da Constituição Federal, constituem exemplos flagrantes de atos que geram intenso sofrimento e comprometimento da integridade física, mental e cultural dos povos originários impactados.


Sob o ponto de vista do crime de genocídio, alguns desafios se impõem para sua configuração.


Parcela dos chamados genocide scholars (estudiosos do fenômeno do genocídio) defendem que uma visão com maior critério sociológico, bem como que considere os referenciais cosmológicos e culturais do grupo vitimado, devem ser considerados para se concluir pela prática do genocídio, não devendo tal constatação se limitar à comprovação do elemento subjetivo que reside apenas na necessária presença do dolo específico (a específica intenção de erradicar um grupo humano por razões nacionais, religiosas, étnicas ou raciais).


Já tivemos a oportunidade de ressaltar que:


“[…] instrumentos e ações sistêmicos, estruturais, podem também compor as dinâmicas de extermínio de grupos humanos atingidos na raiz relacional de suas estruturas sociais e cosmológicas. Podem deixar de existir fisicamente, mas também podem morrer com suas identidades e suas culturas, com seus corpos tomados pela visão produtivista enquanto reserva de mão de obra. Eis, aqui, sob parâmetros claros, a possibilidade de reconhecimento do genocídio estrutural dos povos indígenas, o que não afasta a responsabilidade penal daqueles que decidem implementar políticas econômicas etnocidas […]” (PEREIRA, Flávio de Leão Bastos. Genocídio indígena no Brasil: o desenvolvimentismo entre 1964 e 1985. Curitiba: Juruá, 2018, p.230).


A visão estrutural sobre o crime de genocídio o tem como um ataque mais amplo à existência de um grupo; é mais do que a eliminação física; é a morte social.


Aliás, a amplitude de ações que marcam o crime de genocídio foi assim reconhecida pelo próprio Raphael Lemkin:


“[…] De um modo geral, genocídio não significa estritamente a destruição imediata de uma nação, exceto quando é realizado por meio do assassinato em massa de todos os membros de um país. Pelo contrário, deve ser entendido como um plano coordenado de diferentes ações cujo objetivo é a destruição das bases essenciais da vida de grupos de cidadãos, com o propósito de aniquilar os próprios grupos. Os objetivos de tal plano seriam a desintegração das instituições políticas e sociais, da cultura, da língua, dos sentimentos de patriotismo, da religião e da existência econômica de grupos nacionais, e a destruição da segurança, liberdade e saúde. e dignidade pessoal e até mesmo a vida de indivíduos pertencentes a esses grupos […]” (Grifos nossos) (LEMKIN, Raphael. El Dominio del Eje em la Europa Ocupada. Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008,p.153).

A tipificação internacional do genocídio como crime se deu inicialmente pela aprovação da Convenção para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio (1948), promulgada no Brasil pelo Decreto nº 30.822/1952 e que, diante de fatores históricos e políticos vigentes à época de sua aprovação, restringiu as vias para reconhecimento desse delito ainda mais do que, restringiu as vias para reconhecimento desse delito ainda mais doue a Resolução n° 96 (I) de 11 de dezembro de 1946 que lhe antecedeu (UNITED NATIONS DOCUMENTS. Res. n° 96/1946 (1). The Crime of Genocide).

Nesse sentido, como indicado acima, do ponto de vista jurídico e sob a mais clássica interpretação da norma citada, tem-se o crime internacional de genocídio quando cometido com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Repousa, nesse particular, a dificuldade de em se comprovar um genocídio, na medida em que a demonstração do que se passa na mente do perpetrador depende de base comprobatória projetada no mundo exterior, objetivo, perceptível e palpável.

Assim, a Convenção de 1948 para prevenção e repressão ao crime de genocídio consagrou em seu artigo 2º, alíena “C”, que é genocídio a “intencional submissão de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, a condição de existência capaz de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial”, comando reiterado pela alínea “C”, artigo 6º, do Estatuto de Roma.

Presente, sempre, o elemento subjetivo consistente no dolo específico.

Durante a vigência do III Reich e ao longo da Segunda Guerra Mundial, tal prova mostrou-se possível diante da quantidade de evidências documentais, fotográficas, testemunhais etc. produzidas pelos próprios nazistas, circunstância incomum nos genocídios posteriores ao Holocausto dos judeus da Europa, salvo exceções.


Daí, a crítica à restrição imposta pela exegese clássica.


Novas proposições surgiram, ainda, não apenas a partir dos estudos e pesquisas dos especialistas, mas também começam a ser registradas na jurisprudência do Direito Internacional. É o caso, por exemplo, de interessante decisão proferida no âmbito de caso apreciado pelo Tribunal Internacional Criminal para Ruanda (ICTR) e que apresentou novos parâmetros alternativos sobre a comprovação do elemento intencional do crime de genocídio (casos Nahimana et al e Kalimanzira). Leia-se:

“[…] Pela sua natureza, a intenção nem sempre é suscetível de prova direta. Na ausência de provas diretas, a intenção genocida de um perpetrador pode ser inferida a partir de fatos e circunstâncias relevantes que podem levar além de qualquer dúvida razoável à existência da intenção, desde que seja a única inferência razoável que pode ser feita a partir da totalidade das provas. A intenção genocida pode ser inferida de certos fatos ou indícios, incluindo, mas não se limitando a: (a) o contexto geral; (b) a perpetração de outros atos culposos dirigidos sistematicamente contra esse mesmo grupo, quer esses atos tenham sido cometidos pelo mesmo infrator ou por outros; (c) a escala das atrocidades cometidas; (d) sua natureza geral; (e) sua execução em uma região ou país; (f) o fato de que as vítimas foram deliberada e sistematicamente escolhidas por serem membros de um determinado grupo; (g) a exclusão, neste sentido, de membros de outros grupos; (h) a doutrina política que deu origem aos atos referidos; (i) a repetição de atos destrutivos e discriminatórios; e (j) a prática de atos que violem os próprios fundamentos do grupo ou sejam considerados como tal por seus autores […]” (KLIP, André; FREELAND, Steven; LOW, Anzinga. Nahimara et al. Appeal Judgment, paragraph 524; Kalimanzira Trail Judgment, paragraph 731; Gacumbitsi Appeal Judgment, paragraphs 40-41. Annoted Leading Cases of International Criminal Tribunals – The International Criminal Tribunal for Rwanda 2010. Volume XLII, 1 January – 21 October 2010. Cambridge: Intersentia, 2014, p.121).

Também o nosso grande e saudoso jurista e representante brasileiro na Corte Internacional de Justiça, Antônio Augusto Cançado Trindade, em seu voto vencido no caso Croácia vs. Sérvia, propôs que:

“[…] a intenção de destruir os grupos-alvo, no todo ou em parte, pode ser inferida das evidências apresentadas (mesmo que não seja uma prova direta). A violência extrema na perpetração de atrocidades é testemunho de tal intenção de destruição… Com efeito, exigir evidência direta da intenção genocida em todos os casos não está de acordo com a jurisprudência dos tribunais criminais internacionais… Quando não há evidência direta da intenção, esta última pode ser inferida dos fatos e circunstâncias […]” (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Application of Genocide Convention. [Croatia v. Serbia]. Dissenting Opinion Judge Cançado Trindade. [Livre tradução]).

Pouco a pouco as interpretações e compreensões sobre a caracterização do crime de genocídio vêm ganhando novas perspectivas, ainda que de forma gradativa.

O próprio Tribunal Penal Internacional, no caso envolvendo o então presidente do Sudão Homar Al-Bashir decidiu, por sua Câmara de Apelações, que para a expedição de mandados de prisão pela suposta prática do crime de genocídio basta que se demonstre indícios razoáveis de que o crime tenha sido cometido intencionalmente, e de que o suspeito seja seu autor, direto ou indireto. O estândar de prova da intenção genocidária nessa fase inicial é, portanto, baixo, e tal prova deve ser “inferida dos fatos e das circunstâncias do caso, nos termos da Introdução Geral aos Elementos dos Crimes. Segundo a Câmara de Apelações, o indício do intento genocidário não precisa ser a única conclusão plausível, bastando haver motivos razoáveis para crer na existência do dolo especial do genocídio.[1]

A grave situação humanitária do povo Yanomami que passa a ser tristemente conhecido em todo o Brasil e também com grande repercussão internacional deverá ser objeto de séria e rigorosa investigação para apuração de distintos delitos que, em tese, podem ter sido cometidos.

No que se refere ao Direito Penal Internacional, argumentos existirão para sustentação da ocorrência dos crimes de genocídio e contra a humanidade, mas que guardam importantes diferenças, conforme já afirmamos em entrevista:

“[…] Do ponto de vista do sucesso da ação penal, se pode ir tanto pela acusação de extermínio, que é um crime contra a humanidade, quanto pela de genocídio…Com as novas informações, os indícios de genocídio agora estão mais fortes do que antes […]”.

Importante frisar que o crime contra a humanidade, o crime de genocídio e o crime de guerra, todos, constituem os denominados crimes contra a paz, marcados pelo elemento gravidade e, assim, ocupam o mesmo patamar em termos de relevância para a preservação da segurança e paz internacionais.

A tragédia que se abateu sobre o povo Yanomami, uma vez mais, na medida em que já vítimas de anteriores genocídios, como por exemplo o Genocídio de Haximu (1993), assim reconhecido pelo STF, à época, resulta de um processo gradativo de destruição das bases fundamentais para a sobrevivência dessa cultura e para o qual não faltaram alertas e pedidos de socorro.

Daí a necessidade do desenvolvimento das perspectivas estruturais do crime de genocídio e que considere os parâmetros e referenciais antropológicos, sociais, culturais e cosmológicos dos povos vitimados. Como escreveu Felipe Tuxá:

“[…] parece-me que o genocídio é menos sobre morte e mais sobre vida. Só se pode compreender a incidência da letalidade quando entendemos o que é viver para os grupos envolvidos. Só assim avançamos no entendimento das tecnologias de morte que ali são empregadas […]” (TUXÁ, Felipe. Negacionismo histórico e genocídio indígena no Brasil. In Marcelo Zelic; Ana Catarina Zema; Elaine Moreira. Genocídio indígena e políticas integracionistas: demarcando a escrita no campo da memória, p.29. São Paulo: Instituto de Políticas Relacionais, 2021).

A correta apuração por meio de investigação tecnicamente apurada sob os parâmetros do Estado democrático de direito é essencial não apenas para a adequada classificação do crime (genocídio e/ou crime contra a humanidade), mas também para realização da justiça, consolidação do Estado democrático de direito e pluricultural e, finalmente, para o enfrentamento da barbárie, que deve ser reconhecida e devidamente combatida.

Afinal, remetemos uma vez mais a Edgar Morin (op.cit, p.108): “pensar a barbárie é contribuir para a regeneração do humanismo. É, portanto, a ela resistir”.

Sylvia Helena Steiner é ex-juíza do Tribunal Penal Internacional, senior researcher da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV), coordenadora do Grupo de Ensino em Direito Penal Internacional (GDPI) da FGV/SP e mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP).

Flávio de Leão Bastos Pereira é advogado em Direitos Humanos atuante na esfera internacional, pós-doutoramento em Direitos Humanos e Novas Tecnologias (Mediterranean International Centre For Human Rights Research – Itália), doutor em Direito, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Genocídios e Direitos Humanos (Zoryan Inst. e Universidade de Toronto), professor convidado pela Tecnische Hochschule Nürnberg Georg Simon Ohm, Alemanha, e editor-chefe do Journal of International Criminal Law.


               "LE MONTE"

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